sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Primeiro conto: PROMESSAS

PROMESSAS

Era tudo tão maravilhoso!
Renatinho sentia o vento batendo contra seu corpo magro, quase o derrubando. Embora fosse difícil manter os olhos abertos, não queria perder a paisagem atravessando seu campo de visão. A noite era clara o bastante para enxergar os brotos que acabavam de surgir na terra macia, a grande plantação se estendendo até o horizonte. A fazenda do vizinho era mesmo gigantesca. Nunca havia estado ali antes, seus pais não deixavam.
Mas agora era diferente.
Finalmente tinha um amigo. Uma criatura de sonhos que poderia levá-lo para qualquer lugar do mundo, longe do tédio da cidade interiorana em que nascera. Agradeceu em silêncio por não ter cedido ao impulso inicial, quando viu o bicho pela primeira vez. Se tivesse fugido, não estaria tão feliz agora, quando a alegria era tanta que dava vontade de gritar!
- Mais rápido, MAIS RÁPIDO!
Largou por alguns momentos os pêlos das costas do grande animal, levantando os braços como se estivesse na montanha russa. Embora fosse enorme e robusto, o ser corria de forma tão suave que quase não provocava solavancos. Além disso, era mais veloz que a moto do filho do prefeito! Renatinho queria que aquele metido o visse agora. Papéis invertidos, invejas trocadas, só para variar.
Estavam se aproximando da mata ciliar, aquela porção de floresta que todo fazendeiro preservava por obrigação. O menino achou que a criatura ia parar e dar a volta, mas para sua surpresa ela pulou para o meio das árvores, sem diminuir a velocidade. O cheiro das folhas verdes era delicioso. Renatinho se agarrou mais uma vez ao forte pescoço do animal, curvado ao máximo para evitar os galhos baixos. A lua não podia iluminar ali embaixo das copas, mas tudo bem. Seu novo amigo não deixaria que ele se machucasse.
- Uau, isso é incrível! Como você consegue enxergar o caminho?
O bicho não respondeu. Apenas continuou correndo, desviando das árvores com agilidade delirante. Parecia ser parte do organismo da mata, como sangue fluindo por suas veias. Quase não se ouvia o som das folhas amassando, ou dos galhos sendo quebrados pelo borrão que eram suas patas. Só se viam troncos e mais troncos, passando cada vez mais rápido...
E cada vez menos rápido.
A criatura estava parando. Renatinho não se decepcionou, para um primeiro passeio já estava de bom tamanho. E ainda tinha a volta, que seria tão divertida quanto a vinda!
- Cansou, hein? – perguntou animado para o ser, que estava completamente imóvel. Porém ele não arfava, como seria de se esperar de alguém exausto. Por que parara então?
- Tá tudo bem com você?
O animal continuou parado.
Renatinho começou a ficar com medo.
O bicho fez um movimento súbito, derrubando o garoto das costas. Este rolou pelo chão e, quando levantou o rosto, viu que o grande ser estava em pé.
Rosnava.
- Você prometeu que não ia me machucar... – Renatinho choramingou.
No instante seguinte, ficou claro que a criatura havia mentido.

Amanheceu.
Teodoro Almeida acordou devagar, absorvendo com prazer o ar puro da mata. Raios de sol atravessavam as folhas, perfurando o topo das árvores como se fossem alfinetes luminosos. O canto dos pássaros completava aquilo que seria uma perfeita cena bucólica, não fosse todo aquele sangue cobrindo o chão. Fragmentos de ossos e órgãos estavam espalhados pela área, em partes tão pequenas que um legista não saberia identificar a origem de cada uma.
O homem se espreguiçou, olhando ao redor com indiferença. Há muito havia passado o tempo em que se sentia mal por ver aquilo. O sabor matutino de carne humana já não lhe dava mais enjôo, estava até começando a gostar.
Levantou e foi em direção ao jipe, escondido a poucos metros de onde levara o menino. Banhou-se com os galões de água mineral que havia levado consigo, depois vestiu suas roupas. Não se demorou.
A criança já devia estar sendo procurada.

Mais tarde, passando por uma das pequenas cidades no caminho para Maringá, algo atraiu a atenção de Teodoro. No quintal mal-cuidado de uma casa à beira da rodovia, uma menina de dez anos se balançava, de forma triste, em um pneu pendurado numa árvore. Toda cidade de interior tinha crianças assim, com o olhar distante e sonhador, a mente grande demais para ficar presa em localidades e corpos tão diminutos.
Crianças que acreditavam em suas promessas.
Teodoro anotou mentalmente o local do casebre. Já estava bem longe da última cidade em que agira, então as autoridades não seriam problema. Havia uma mata a leste dali, onde talvez pudesse esconder o jipe. Voltaria em alguns dias para planejar sua rota de fuga.
Não se preocupe, garotinha – ele pensou. - Na próxima lua cheia, sua solidão vai acabar.
Eu prometo.

4 comentários:

questão disse...

É bem surreal e agoniante, principalmente o final. Muito bom.

Anônimo disse...

Muito bom seu texto! Gostei muito mesmo... continue escrevendo assim! Parabéns!


Amplexos.

Brenno Matthias disse...

Excelente texto Mario. Já tô vendo que tu é fã de werewolfs tbm.
Agora que tú me incitou ao seu site, vou ler tudo.
Muito bom mesmo, parabéns!!!

André Bozzetto Junior disse...

Excelente conto! Acho que você deveria escrever sobre lobisomens mais vezes!

Abraço!