domingo, 31 de outubro de 2010

TORMENTO

Dia das Bruxas, dia de eleições, dia de retomar às atividades no Blog (ou talvez hoje seja apenas uma exceção na interrupção das atividades? O tempo dirá). De qualquer forma, obrigado a todos que sentiram minha falta (sim, eu li as mensagens). Aqui vai um conto que foi publicado originalmente no livro Draculea - O Livro Secreto dos Vampiros, organizado por Ademir Pascale. Um abraço e feliz Dia das Bruxas!

TORMENTO
As nuvens noturnas se agitavam sobre as cordilheiras, beijando os cumes com lábios elétricos e destruidores. A água ainda não havia começado a cair, como se a tempestade estivesse na expectativa, aguardando o momento certo para desempenhar seu papel. Observando tudo do topo de uma das montanhas, o gigantesco vampiro de cabelos negros ponderou que não era um cenário ruim para morrer.
Mas com certeza era melhor para matar.
Percebera a aproximação dos intrusos minutos antes, agora mantinha a espada desembainhada, à espera. Tinha expressão grave, inadequada com sua índole expansiva e rebelde. Não era justamente essa rebeldia que estava colocando sua vida eterna em risco? Afastou o pensamento, não era dado a lamentações. Além disso, talvez o ancião não soubesse do seu envolvimento nos acontecimentos recentes, e viesse apenas investigar. Mas na pior das hipóteses, o dono do território ainda tinha chance de vencer. Afinal, era o maior de sua espécie, e muitos haviam experimentado a lendária força de seus golpes como sensação derradeira.
Refletia sobre isso quando o batalhão surgiu na trilha lá embaixo, caminhando à beira do abismo de profundidade ignorada.
- Veja só quem desceu de sua montanha para visitar meu humilde morro! – gritou o titã, para se fazer ouvir entre os trovões. - A que devo a honra?
O líder deteve a marcha e levantou os gélidos olhos azuis, os vastos cabelos brancos balançando como fantasmas.
- Uma vez que não parece surpreso com minha vinda, creio que você já sabe o motivo – respondeu a figura imponente, botando o máximo de desprezo na palavra “você”. Os vampiros só se tratavam pelos nomes quando havia algum respeito mútuo.
- Por que me surpreenderia? Você sempre escolhe noites tempestuosas para tuas ações, fazendo os humanos ignorantes acreditarem que o tempo se curva à vossa vontade, e não o contrário.
Os guerreiros soltaram imprecações de revolta entre os caninos afiados, sendo calados por um gesto do comandante.
- Suas blasfêmias foram toleradas por tempo demais.
- “Blasfêmias”? Será que após tantos séculos de fingimento, começou a acreditar no próprio embuste? Hilário! Pensa que é mesmo um deus, quando não passa de um iludido recebendo adoração do próprio gado!
- Tua língua se volta contra você, que espalhou o boato de ter sido o criador da raça humana.
O peito grosso como um pilar vibrou numa gargalhada retumbante, causando desconforto nos soldados ansiosos.
- Apenas um gracejo para me divertir com os macaquinhos, nada mais.
- E entregar nosso maior segredo a eles, também foi uma piada?
- Se foi, é uma que não conheço – respondeu o colosso, com inocência quase convincente. - Não sei do que está falando.
- Além de tolo, é mentiroso! – urrou o mais velho, perdendo a paciência. - Tolo por não conhecer o potencial dos homens para a aniquilação total, e mentiroso porque seu real intento era conquistar a simpatia deles, formando um exército para tomar o poder!
- Ah! A senilidade começa a mostrar sua triste face!
- Acho que não é do meu crânio que a razão começa a esvair! Soube que também revelou nossas fraquezas, algo estúpido demais até para você! Assim nos contou seu comparsa, antes de... Bem, antes disso.
O vampiro grisalho recebeu um objeto redondo do assecla ao lado e jogou para o dono do território, no momento que a chuva começava a martelar as rochas para escorrer em cachoeiras escurecidas. Desapontado, o gigante olhou a face de seu bravo irmão, imaginando que tipo de tortura havia quebrado sua inabalável vontade. Agora, era o adversário que sorria.
- Apesar de sua fama, não passa de um covarde. Já que desejava o comando, por que não me desafiou de forma honrada?
Porque acho que sua armada de fanáticos não me aceitaria como líder – refletiu, mas como não havia mais possibilidade de derrubá-los numa guerra, abandonou a argumentação e berrou:
- Como queira, velhote! Eu o desafio pela lideran...
A figura de cabelos brancos saltou com tal velocidade que o desafiante mal teve tempo de levantar a espada, sendo jogado para trás com o impacto brutal. Firmou-se e deteve outro movimento do oponente, que teria arrancado seu braço esquerdo numa explosão de ossos e agonia.
Os guerreiros chegaram instantes depois, cercando os lutadores com grave expectativa. Confiavam na capacidade de seu mestre, que por ser o mais antigo deles, também devia ser o mais poderoso. No entanto, ele mal batia no ombro do inimigo, cujos golpes desciam com a intensidade de árvores seculares caindo no solo. Pelo que tudo indicava, a diferença de tamanho os deixava equilibrados.
Totalmente concentrados no combate, nenhum dos dois falava; as espadas zuniam e cortavam gotas de chuva, antes de colidirem com estrondos que sobrepujavam os próprios trovões; os expectadores tinham dificuldade em acompanhar os golpes, que sequer eram desferidos com força máxima; afinal, caso um deles fizesse um movimento muito intenso e o outro desviasse, ficaria desequilibrado e vulnerável a uma estocada letal; portanto, estudavam a movimentação alheia numa dança calculada, aguardando algum deslize enquanto provocavam pequenos ferimentos, que fechavam logo em seguida.
O erro veio após vários minutos. O ancião desferiu um golpe em arco lateral, que foi antecipado pelo mais jovem e este desviou com facilidade.
Os soldados soltaram um lamento quando seu comandante cambaleou para frente.
O adversário agarrou o cabo com as duas mãos para desferir o golpe final.
Morra, verme! – pensou em triunfo, porém o velho desviou com uma finta, girou a lâmina e atravessou o coração do gigante, que perdeu os sentidos antes de compreender que havia sido enganado.

O líder olhou pesaroso para o oponente caído. O grande idiota, acreditando que poderia comandar os comedores de sólidos com falsa benevolência! Embora fossem fracos e primitivos, os humanos eram imensamente mais numerosos, parindo suas crias com a rapidez de coelhos silvestres. Era conveniente aos vampiros se passarem por deidades para controlá-los, com a vantagem de torná-los presas dóceis. Mas agora, estava tudo acabado. O segredo que o titã entregara aos homens se espalhava de aldeia em aldeia, com tal velocidade que seria impossível interromper o processo. Logo aprenderiam a construir espadas, machados e coisas piores, para depois se voltarem contra seus antigos deuses.
Por trazer a ruína ao seu povo, o culpado precisava pagar. Os instrumentos de punição foram preparados com rapidez, pois os ferimentos do traidor logo cicatrizariam.
- Já que tem tanta vergonha de ser uma divindade, providenciarei para que seja lembrado de outra forma – rosnou o ancião. - Nem em nossos registros será considerado um de nós.
Após definidos os vigias do primeiro turno, o líder partiu com os demais, todos abatidos pela preocupação. Em breve, abandonariam a esfera dos mitos divinos e passariam a viver nas sombras, como predadores secretos, embarcando assim numa categoria de lendas bem mais sinistra.

O perdedor despertou acorrentando no cume da montanha, os elos tão imensos que nem sua força prodigiosa seria capaz de arrebentar. A luz do dia convertera sua epiderme branca em uma grande mancha vermelha, a sede implacável ainda pior que a aflição das queimaduras. Viu um pássaro carniceiro descer sobre seu abdome desprotegido, e a pele fragilizada pelo sol foi rasgada com facilidade.
Gemeu de amargura quando suas vísceras começaram a ser devoradas. Outras aves vieram participar do banquete, disputando cada pedaço com selvageria. Logo perceberam que isso era desnecessário, pois os órgãos do prisioneiro se regeneravam após cada bicada, prontos para sofrerem de novo o mesmo martírio. Com uma fonte inesgotável de alimentos à disposição, aqueles animais outrora nômades acabariam fixando residência no local, garantindo assim o sustento de seus descendentes.
Enfim arrependido por ter ensinado aos homens como produzir o fogo, o vampiro conhecido como Prometeu soltou um grito que ecoou por todo o monte Cáucaso, um brado de desespero e dor intolerável.
Um som que se repetiria muitas vezes nos próximos milênios.