terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

CAÇADA

Caçada

A grande ave voava sobre o oceano, em busca de uma presa.
Nenhuma corrente marítima seria capaz de mantê-la no ar, então precisava bater as asas constantemente, da mesma forma que um tubarão nunca parava de se mover. Forçou os olhos poderosos em busca de algum vulto próximo à superfície, algo que pudesse alimentar a ela e seus filhotes por pelo menos um dia.
E então, avistou uma vítima em potencial.
Após dois movimentos vigorosos para pegar velocidade, o pássaro fechou as asas e mergulhou como uma grande flecha, concentrado. Caso errasse o ataque, precisaria realizar uma volta muito extensa antes de fazer outra tentativa. Nesse meio-tempo, a refeição poderia afundar e fugir.
Suas crias dependiam daquilo.
Não podia errar.
Próximo da água, o animal esticou as patas e atingiu a presa com mira perfeita. Bateu as asas, provocando vagalhões antes de arrebatar sua caça aos céus.
Aprisionada entre as garras titânicas do Pássaro Roc*, a baleia emitiu sons de pavor.

* http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1ssaro_Roc

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Terrorzine 6 - Miniconto A Loira da Estrada

Boa noite a todos. Espero que minha última postagem tenha agradado, senão pelo conteúdo, ao menos pelo tamanho. Pretendia ficar mais uma semana sem postar nada, mas saiu a Terrorzine 6 com um miniconto meu. "Nossa, outro conto dele na Terrorzine, que novidade", ouço um de vocês resmungar ao fundo. Bom, na verdade a história tem um tom diferente daquele que estou habituado. Quem quiser conferir e dizer se tive sucesso, é só baixar a revista virtual e ir para a página 27. Aliás, essa edição é a primeira que tem um tema, "folclore, lendas e mitos", e tem muita coisa boa.

Baixaí!

www.cranik.com/terrorzine6.pdf

Até breve.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

CONTO: O CONFESSIONÁRIO

O Confessionário

Sinto muito, padre, mas não posso aceitar o que você está me oferecendo.
Estou ciente das suas preocupações, meu amigo. Sim, vou explicar o porquê da minha recusa. Faço isso apenas para deixar sua consciência tranqüila, não quero que fique pensando que poderia ter feito mais por mim.
Eu também já fui padre, sabia? Pela expressão em seu rosto, vejo que não é fácil acreditar nisso. Sei que não falo como um clérigo, e não é de se estranhar. Afinal, larguei a batina já faz cinqüenta e três anos, tempo bastante para perder todos os maneirismos do ofício. Mas estou me adiantando, é justamente sobre minha última noite no sacerdócio que vou contar.
Tinha trinta e quatro anos na época, e era responsável pela igreja de Rosa Cruz fazia oito meses. Com apenas quatro mil habitantes, aquela era a típica cidadezinha do interior. Calma e sossegada, da forma que as pessoas da cidade grande ainda idealizam, sem saber que esse tipo de lugar já não existe mais. Meu rebanho era fiel, e a falta de distrações mantinha todos no caminho do Senhor. Para mim, isso era um problema. Afinal, eu havia cometido um grave erro em meu passado e, ansioso para compensar meus pecados de alguma forma, me sentia aflito por não estar fazendo muita diferença por ali.
E então, na madrugada de 19 de novembro de 1953, algo me acordou. Uma voz saída do nada, que sussurrou no meu ouvido: “Acorde José, e vá até a igreja. Você tem uma missão”. Sabe, nunca fui dado a esse tipo de impressão, não tinha pretensões de ser chamado por Deus algum dia, para realizar uma de suas santificadas incumbências. Contudo, não podemos faltar com o Espírito Santo quando somos convocados e, na dúvida, não tive dúvidas: peguei a batina no armário e me preparei para sair. Talvez aquela fosse minha oportunidade de redenção, pela qual tanto havia orado.
Assim que cheguei na igrejinha, abri as portas da frente e as deixei escancaradas. Acendi todas as velas do recinto para conseguir alguma iluminação, depois fiquei sem saber o que fazer. Afinal, a voz não havia sido muito específica sobre meu próximo passo. Imóvel, observei as sombras bruxuleando entre bancos de madeira, crucifixos e santos com expressão sombria. Pedi orientação ao Senhor e, após alguns instantes, algo dentro da nave chamou minha atenção, como se estivesse destacado do resto do lugar.
O confessionário.
Sei que atualmente eles já não são mais utilizados, vocês vigários preferem levar os fiéis até alguma sala para conversarem, de uma forma mais informal. Mas naquela época as pessoas ficavam mais envergonhadas por seus pecados, e encarar o padre de frente seria algo impensável. Aquele era do tipo mais comum, dividido em dois cubículos. Instalei-me no meu lugar e esperei, na certeza de que algo iria acontecer.
No entanto, a longa passagem dos minutos foi abalando minha confiança. Comecei a questionar se tudo não passara de um sonho, e a voz que pensei ter ouvido, mero fruto de uma mente que tanto ansiava por absolvição. A noite estava bastante quente, então você pode imaginar como estava abafado ali dentro. Além disso, a escuridão quase total abria espaço para sensações inquietantes.
Desolado, já estava quase indo embora quando ouvi os passos vindos da rua.
Sem hesitar, o visitante veio direto até o confessionário, abriu a porta do outro cubículo e ali se instalou. Homem ou mulher, eu ainda não podia saber. Se durante o dia já era difícil definir os contornos da outra pessoa pela tela, na madrugada era possível ver apenas um vulto escuro.
- Me perdoe, padre, pois eu pequei – disse uma voz feminina, esclarecendo o mistério. – E faz muito tempo que não me confesso, tanto que não me recordo da última vez.
- Tudo bem, minha filha – falei com gentileza, sentindo-me tocado pela angústia em sua voz, encoberta por uma calma forçada que parecia prestes a desabar. – Não tenha medo, me diga o que te aflige.
Seguiram-se alguns segundos de silêncio, tão completo que eu poderia pensar que não havia ninguém ali comigo. A presença de duas pessoas naquele espaço fechado fazia a temperatura subir ainda mais, então era difícil ser paciente. Estava quase repetindo meu pedido quando ela começou:
- É... É muito complicado. Eu me apaixonei por uma pessoa, alguém que jamais poderia corresponder meu amor.
- Entendo, criança. Um homem comprometido?
- Sim, de certa forma. Mas mesmo sem poder compartilhar dos meus sentimentos, ele consentiu em aceitar meu corpo. Fiquei cega pela paixão, achei que conseguiria convencê-lo a ficar comigo! Como fui burra! Ele se arrependeu de tudo e me abandonou, levando consigo minha felicidade e deixando apenas culpa para trás...
Então é esse seu problema – pensei, sentindo uma certa identificação com sua amargura. - Arrependimento por ter levado outra pessoa ao mau caminho. No caso dela, um homem casado à infidelidade. O pesar que cresce cada vez mais, quando já não se tem a presença da pessoa amada para nos fazer esquecer do pecado.
- Minha querida, o adultério realmente...
- Ainda não terminei! – ela exclamou, num grito tão repentino que me fez dar um pulo. - Você está tirando conclusões precipitadas, minha culpa é muito maior do que uma simples traição! Se fosse apenas isso, eu seria uma pessoa feliz!
Fiquei sem fala ante tal afirmação, e também pela rudeza com que estava sendo tratado. Ela continuou:
- Perdão, reverendo. Estou sendo mal-educada, só que estou tão nervosa...
- Tudo bem, criança – falei de forma pausada, disposto a deixar passar. Limpei o suor da minha testa com um pano e pedi para que continuasse.
- Tá bom, mas... Será que antes, eu poderia fazer uma pergunta?
- Claro, minha filha, claro.
- Padre... Por que o suicídio é considerado um pecado mortal?
Foi apenas nessa hora que compreendi a grandeza da minha missão: aquela moça pretendia tirar a própria vida naquela noite! Agradeci em silêncio ao Senhor, por ter me enviado aquela pobre coitada em seu momento de maior necessidade.
Falei que a vida era um dom dado por Deus, portanto nós não tínhamos o direito de dela dispor com liberdade. O quinto mandamento era bem claro a respeito disso, “não matarás” valia em todos os casos. Quando a pessoa se matava, ela estava negando o dom supremo. Isso constituía um desrespeito ao Criador, o único que tinha direito de retomar nosso espírito, no momento que considerasse adequado. O suicida era aquele que pensava estar além de qualquer ajuda, mesmo a divina, e o ato de tirar a própria vida era a suprema negação à intervenção divina. Dessa forma, aquele que se matava estava condenando a própria alma ao inferno.
- Pois então é isso, minha filha. Como pode ver, essa não é a solução.
- Eu sei, reverendo, eu sei...
- Então, me prometa que não seguirá por esse caminho.
- É meio tarde pra me pedir isso.
- Por quê? Está assim tão decidida a se suicidar?
- Não, padre. Eu já me suicidei.
Um frio intenso desceu por minhas costas, contrastando com o calor crescente dentro do confessionário.
- Perdão minha filha? – questionei, embora tivesse ouvido com clareza. – Você quis dizer que já tentou o suicídio, é isso?
- Não, reverendo. Fui bastante competente em minha única tentativa.
Embora tenha ficado assustado em um primeiro momento, comecei a ficar nervoso no segundo. A igreja era um lugar sagrado, não de pilherias e desrespeito!
- Isso é algum tipo de brincadeira? – perguntei, tentando manter a calma.
- Não. Eu jamais teria lhe chamado até aqui, se o assunto não fosse sério.
- Como...?
- O senhor faz perguntas retóricas demais, padre. Você sabe muito bem do que estou falando: “Acorde José, e vá até a igreja. Você tem uma missão”.
Ah, meu amigo, nessa hora eu devo ter ficado mais branco que a cera das velas que queimavam sobre o altar.
- Não foi fácil mandar essa mensagem de tão longe, mas eu consegui. – continuou aquela voz, que subitamente havia adquirido uma entonação rascante e sobrenatural - De fato, consegui fazer coisas que o próprio Satanás julgaria impossíveis.
- Saia da minha igreja! – falei com firmeza, a coragem de um animal que foi acuado e não tem mais para onde fugir.
- “Sua igreja”, padre? Você não mudou nada, meu anjo barroco. O mesmo egocêntrico de sempre.
Senti minha pouca visão se embaralhar quando ouvi essas palavras, e precisei segurar nas paredes do confessionário para não desmoronar. Apenas uma pessoa já havia me chamado daquela maneira.
- Laura? – sussurrei.
- Exato, meu querido – a mulher sibilou. – Sei que minha voz está diferente, é que já não tenho minhas antigas cordas vocais. De fato não tenho nenhuma, mas não vamos entrar em detalhes.
Sim, a voz não era a mesma, só que a maneira de falar era igual. O mesmo desprendimento daquela moça de Laranjal do Norte, a cidade onde eu morara antes de ir para Rosa Cruz. Logo que me tornei responsável pela capela de Laranjal, percebi que Laura me olhava de uma maneira diferente das outras fiéis. Eu sabia lidar com mulheres que demonstravam um interesse indevido por mim, porém por algum motivo - talvez por ela ser a garota mais linda e inteligente que já havia conhecido - não consegui afastá-la completamente. Deixar essa brecha foi meu erro. Sabendo que não conseguiria acabar tudo enquanto continuasse por lá, pedi minha transferência.
- O senhor leu os jornais, não leu? Sabe muito bem o que fiz depois, umas três semanas após sua partida.
Sim, eu sabia. Ela havia se enforcado.
Segundo as manchetes, a razão do suicídio constituía um mistério. Embora tenha ficado arrasado com sua morte, tenho que admitir uma coisa: o fato dela não ter contado nada a ninguém me trouxe alívio, o quê, por sua vez, aumentou ainda mais meu remorso. Pensei nisso naquele momento, e então uma idéia veio à minha mente: e se na verdade, Laura tivesse sim contado tudo para alguém, e era essa pessoa que estava diante de mim agora? Uma amiga, uma prima, quiçá uma tia, qualquer mulher disposta a se vingar? E talvez, essa mulher tivesse sussurrado aquelas palavras na janela do meu quarto, dando a impressão que sua origem era celestial. Sim, só podia ser isso! Levantei num rompante, disposto a arrancar a moça do confessionário e tirar essa história a limpo.
Um braço ressequido atravessou a janelinha, envolvendo meu pulso com dedos retorcidos. Gritei de dor, não por causa da força sobre-humana que quase esmagava meus ossos, mas sim devido ao calor intenso que a mão da criatura emanava. Ela me puxou para baixo e – graças aos céus - soltou assim que sentei novamente.
- Eu não faria isso, reverendo – ela falou com tranqüilidade. – Não sou mais aquela mocinha bonita que você recebeu com tanto gosto em sua cama. Preciso da sua sanidade intacta para o que vou pedir, e não tenho certeza se o senhor suportaria olhar para mim sem enlouquecer.
Acho que ela não estava exagerando. A fraca visão de seu braço na penumbra já era perturbadora em excesso, mesmo sem poder definir como era a aparência de sua pele, pude perceber que não parecia humana. O lugar onde havia me agarrado ardia com intensidade. Comecei a rezar baixinho, enquanto aquele membro tenebroso retornava para o cubículo em frente. Uma vez que a tela havia sido rasgada, Laura se espremeu contra a parede oposta, seus contornos obscuros se misturando com a penumbra.
- Isso, fique bem quietinho enquanto termino minha confissão. O fato de você ter preferido a batina já era doloroso demais para mim, mas foi sua partida que me trouxe desespero. Pensei em vir atrás do senhor, mas pra quê? Eu sabia que não adiantaria. Sem remédio, acabei entrando em depressão. Precisando de apoio, contei tudo para minha avó, a pessoa que eu mais confiava nesse mundo. Sabe o que ela fez? Me esbofeteou, gritando como uma alucinada: “Menina que namora padre vira mula-sem-cabeça!”. Depois dessa inesperada aula de folclore, vovó virou as costas pra mim. Se ela soubesse que eu iria me transformar em algo ainda pior...
Eu continuava minha oração, a agonia em meu braço diminuindo aos poucos, enquanto a temperatura dentro da cabine seguia pelo caminho contrário.
- Foi no inferno que ganhei essa carcaça pavorosa. Sabe, a alma não sente dor, só a carne. Então, os demônios colocam nossos espíritos nestes... Receptáculos, feitos de algum tipo de matéria infernal, que de início são coisas amorfas e cascudas, porém se tornam maleáveis nas mãos de nossos carrascos. Eles nos moldam em uma tosca versão de nossa aparência em vida, apenas para aumentar nosso sofrimento, depois entram em nossas mentes e falam coisas... Esses corpos permitem nossa comunicação pela força do pensamento, entende? Isso não é uma dádiva, serve apenas para que os condenados possam berrar por misericórdia naquele limbo, onde o som de verdade não consegue atravessar.
Só nessa hora, reparei que a fala de Laura parecia vir do centro do meu cérebro, e não do cubículo em frente. Acho que é por isso que a voz dela estava diferente, afinal, o som dos nossos pensamentos não deve refletir o das nossas cordas vocais. Mas perdoe as conjecturas desse velho tolo. Ela continuou:
- Eles nos aplicam os mais terríveis suplícios, torturas que desintegrariam a carne humana em segundos, mas não o material desse corpo! Não, não, minha casca se fecha rápido, permitindo que eles possam continuar sempre e sempre, e eu grito mentalmente e eles riem e gargalham e continuam e não é sangue que escorre das minhas chagas antes delas cicatrizarem, padre! Não, negativo, o que sai de dentro de mim é fogo!
Passei a mão de leve sobre meu pulso ferido, imaginando que isso era fácil de acreditar. Sua “voz”, ou fosse lá o que fosse, começou a ficar mais alta.
- Fogo puro e escaldante, que queima a pele e causa uma agonia intolerável! Consegue imaginar isso, padre José? Consegue imaginar o tormento ao qual me condenou, SEU MALDITO?!
Encolhi-me no canto, apavorado, pensando se teria alguma chance de fugir correndo e decidindo pelo contrário.
- De alguma forma que não consigo compreender, consegui escapar. Demorei semanas para atravessar todos os círculos infernais, o medo de ser descoberta era uma tortura tão grande quanto àquelas que já havia sofrido. Os demônios têm um senso de humor bastante perverso, como não poderia deixar de ser. Eu imaginava que eles haviam permitido minha fuga, apenas para me dar esperanças vãs e, no momento em que visse a luz do dia, seria capturada e arrastada novamente para o abismo!
O vulto amorfo se contraiu ainda mais, e não pude deixar de sentir piedade.
- Mas no final das contas, eu consegui enganar aquelas abominações asquerosas... Tudo que fiz para chegar até aqui era considerado impossível. Mesmo assim, foi mais fácil do que conquistar seu amor, meu anjo barroco. Mas não se preocupe, já desisti de você. Afinal, não poderíamos ficar juntos. Não, não, o que eu quero agora é seu perdão.
- Meu perdão...? – perguntei, sem compreender.
- Sim. Tive muito tempo para refletir sobre o assunto lá embaixo. Parece tão injusto, não parece? Tudo bem que eu não era uma santa, mas não merecia ser condenada por toda a eternidade, merecia? Em razão de um último ato de desespero? Remoí a idéia enquanto eles moíam meus membros, até que de repente, tive uma revelação! Desculpe-me discordar de você, reverendo, mas há uma explicação bem mais simples para o fato do suicídio ser um pecado mortal: é porque ele não pode ser confessado! Por motivos óbvios, o suicida não tem tempo de se arrepender e pedir por absolvição. E como o senhor sempre disse, apenas o arrependimento sincero pode redimir nossos pecados, sejam eles quais forem!
Fazia sentido. Eu nunca havia pensando por esse ângulo e, mesmo naquele estado de pavor, fiquei impressionado com tal raciocínio.
- Bem, só que eu consegui contornar esse detalhezinho, não é verdade? Pois aqui estou, reverendo. Esse foi meu pecado, amarrei uma maldita corda em meu pescoço e pulei do banquinho, então me perdoe. Não precisa perguntar se estou arrependida, pode acreditar, nunca houve uma pessoa tão arrependida em toda a história da humanidade!
Ela soltou uma gargalhada insana, e fiquei sem reação ante aquele pedido blasfemo. Se Deus já havia condenado Laura, então não havia como mudar a sentença. Caso lhe concedesse o perdão, eu estaria afrontando uma decisão divina, cometendo um pecado tão mortal quanto o próprio suicídio!
- Eu sinto muito, minha filha, mas não posso...
A criatura se jogou para frente, arrebentando a divisória do confessionário. Fechei os olhos, evitando qualquer vislumbre de seu corpo repelente. No instante seguinte ela agarrou minha cabeça com suas mãos abrasadoras, e senti a pele queimar. Sua voz era um guincho insuportável dentro da minha cabeça, como o som de um giz arranhado o quadro negro.
- NÃO OUSE RECUSAR MEU PEDIDO, VERME! VOCÊ SABIA QUE EU ESTAVA APAIXONADA, MESMO ASSIM DORMIU COMIGO E DEPOIS FUGIU! NÃO NEGUE SUA PARCELA DE CULPA NO MEU SUICÍDIO! VAMOS, ME DÊ UMA PENITËNCIA E DEPOIS MEU PERDÃO! VOCÊ ME DEVE ISSO, SEU COVARDE! VOCË ME DEVE!
Sei que não deveria ter obedecido. Relembro aquele momento vergonhoso todos os dias, e fico fantasiando que consegui me manter firme, negando a ordem de Laura até o fim. Com certeza ela me mataria, mas eu não teria arriscado minha alma à perdição. É, é fácil pensar isso agora, quando aqueles dedos escaldantes não estão envolvendo meu crânio e formando bolhas.
Não hesitei um segundo antes de implorar:
- Tudo bem tudo bem mas me solte por favor me soooolte!!!
Ela largou, porém manteve as garras próximas de meu rosto, em suspenso. O cheiro nauseante de carne queimada só não era pior que a dor.
- Creio que essa seria a hora em que você me daria alguns conselhos – a aparição continuou. – Todavia, acho que podemos pular essa parte. Não vou me matar de novo, pode ter certeza. Então vamos, diga minha penitência.
- Sim, sim... Reze dez Ave-Marias e vinte Pai-Nosso...
- Não acha pouco? – ela questionou, e senti que aquelas mãos deformadas estavam se aproximando mais uma vez.
- Cinqüenta de cada então! Cinqüenta de cada!
- Tudo bem, meu anjo barroco. Mas pro seu próprio bem, espero que isso seja o suficiente para minha salvação. Caso contrário, eu juro que arrasto você comigo até o inferno, entendeu?!
- Entendi, entendi... Por favor, reze o ato de constrição agora.
- Tudo bem. Senhor meu Jes...
Nesse momento ouvi um estrondo altíssimo, e meu rosto foi envolto por um calor ainda mais intenso que as garras de Laura. Atordoado, corri para fora do cubículo, batendo as mãos em minha face e apagando o fogo nas sobrancelhas e cabelo. Pensei que ia perder os sentidos, porém o barulho da outra porta do confessionário me obrigou a continuar desperto.
O corpo sem cabeça de Laura caiu no assoalho, as chamas que saíam de seu pescoço incendiando os bancos de madeira mais próximos. De alguma forma, seu crânio havia estourado antes que ela pudesse completar a palavra “Jesus”. Ainda não encontrei explicação pra isso. Talvez uma intervenção divina tivesse impedido que ela continuasse, ou quem sabe uma criatura infernal não pudesse pronunciar um nome santo, não sei... De qualquer forma, pensei que aquele pesadelo havia acabado.
Foi então que a coisa se colocou em pé num pulo, cambaleando em minha direção de forma obstinada. Tentei correr, mas as pernas não obedeciam. Paralisado pelo medo, vi a entidade de formato feminino esticar os braços, o brilho das labaredas reluzindo em sua pele rugosa e abjeta.
Ela estava quase me alcançando quando diversas mãos surgiram do nada e a agarraram, impedindo seu avanço. Mas não eram os anjos do Senhor me salvando.
Eram justamente o contrário.
Gargalhadas profanas tomaram conta da igreja. Os entes demoníacos moviam-se tão rápido que não pude identificar suas formas, e agradeço aos céus por isso. No entanto, eu conseguia ver o que eles estavam fazendo: imobilizaram a suicida, que se contorcia como uma serpente moribunda, depois começaram a modelar seu corpo, quebrando-o e esticando-o. Laura não havia mentido, os demônios tinham mesmo um senso de humor bastante doentio. Cascos surgiram na ponta de seus membros, o ventre se expandindo enquanto pêlos negros brotavam por toda sua carcaça, que ficava com uma aparência cada vez mais eqüina. A abertura no pescoço decapitado começou a fechar, mas os diabretes não permitiram. Seguraram as bordas e moldaram um buraco permanente, para que o jorro flamejante nunca parasse de irromper por ali.
Corri antes de ver terminada a horrenda metamorfose, pois sabia que Laura viria atrás de mim para cumprir sua promessa. Esgueirei-me pelas sombras, vendo as pessoas correndo na direção da igreja que incendiava. Peguei meu cavalinho no estábulo ali perto e fugi pela estrada escura. Só parei no dia seguinte, quando alcancei a cidade mais distante possível. Procurei ajuda de um médico amigo meu, que cuidou das minhas feridas e concordou em me esconder na sua casa, sem fazer muitas perguntas. Permaneci ali durante alguns dias, mas logo os rumores chegaram aos meus ouvidos.
Diziam que alguns moradores de Rosa Cruz haviam visto uma mula-sem-cabeça saltar para fora da capela incendiada, cavalgando veloz em direção à floresta. Aqueles que a viram não tinham conservado o juízo perfeito.
Na mesma noite em que ouvi isso, senti que Laura estava se aproximando.
Desde então, virei um fugitivo. Não podia me instalar em um mesmo lugar por muito tempo, pois logo sentia sua amaldiçoada aproximação. Fui morar na Europa e depois Austrália, descobrindo que os oceanos não constituem impedimento para uma entidade infernal. De alguma forma ela me seguiu até lá, mas como sempre, consegui ir embora antes dela chegar perto demais. Às vezes, penso que ela me deixava escapar, apenas para aumentar meu tormento.
Acabei voltando ao Brasil. Com o passar das décadas, todo o meu dinheiro acabou, resultando na minha atual situação de miséria. A parte boa é que aquela sensação de proximidade foi ficando cada vez mais esparsa, e já faz cinco anos que não sinto qualquer sinal de Laura. Não creio que ela desistiria, mas acho que consegui despistá-la quando vim pra São Paulo. O medo de ser encontrado era a única coisa que me mantinha vivo, então aqui estou agora, no fim da minha jornada de pavor e remorso. Outra irá se iniciar, e temo que será longe dos braços do Criador.
Entende agora porque não posso aceitar a Extrema-unção, reverendo? Ela é destinada àqueles que possuem ao menos uma pequena chance, e talvez eu não tenha nem isso. Se eu aceitasse, o senhor também estaria se arriscando ao suplício eterno, algo que não quero adicionar à minha lista de culpas. Preciso enfrentar meu destino sozinho, e qualquer chance de misericórdia – sim, ainda tenho esperança – cabe unicamente a Ele. Então por favor, não insista.
Eu não pretendia falar por tanto tempo, agora estou exausto. Importa-se de deixar este velho decrépito dormir um pouco, padre Thiago? Caso eu não passe dessa noite, sinta-se à vontade para rezar por mim. Ah, e se não for incômodo, o senhor poderia verificar se minha janela está bem fechada? Obrigado meu amigo, e adeus por hora.

Padre Thiago permaneceu imóvel durante muito tempo, olhando para o ancião que começava a adormecer. Com relutância, chamou uma das freiras para permanecer ao lado do moribundo. Sua paróquia prestava auxílio no abrigo para indigentes, e sempre havia muito a ser feito por ali.
Dirigiu-se até o refeitório para conversar com os mendigos. Mesmo após terminada a janta, muitos permaneciam por ali para aproveitar o calor humano. Depois, foi ajudar o cozinheiro a lavar a louça, mas não conseguiu esquecer a história de José. O velho havia chegado ali há menos de dois meses, conquistando a todos com sua inteligência e simpatia.
Seu relato era absurdo demais para ser verdade. A explicação mais coerente era que tinha sido vítima de uma brincadeira de mau gosto e, influenciado pelo medo, havia visto coisas que não existiam. Na fuga, devia ter derrubado algum castiçal, iniciando o incêndio que destruiu a igreja e provocou aquelas marcas de queimadura em sua face. Pobre homem, fugindo a vida inteira de uma ilusão. E agora estava realmente arriscando sua alma, ao recusar a última chance de absolvição.
O vigário esperava que o velho sobrevivesse àquela noite, para tentar mais uma vez convencê-lo. Já estava planejando os argumentos que ia usar, quando escutou algo que o fez derrubar uma das bandejas no chão.
Da rua em frente, vinha o som de cascos.
Deve ser algum carroceiro coletando o lixo... – pensou envergonhado, recolhendo a louça. No entanto, o barulho estava ficando cada vez mais próximo. O cozinheiro parou o que estava fazendo, também prestando atenção. Abriu a boca para perguntar:
- O quê...?
Ouviram um grande estrondo na porta da frente, seguido de um galope.
Não é possível! – pensou o padre, andando rápido em direção à entrada e vendo a porta caída, em chamas. Uma intensa claridade vinha da sala de jantar, junto com um pandemônio de mesas derrubadas e gritos histéricos. Quando ele entrou correndo no refeitório, aquilo não parecia mais um abrigo para indigentes, mas sim um hospício.
- UM CAVALO! UM CAVALO SEM CABEÇA! – berrou um dos maltrapilhos, tentando agarrar o braço do vigário.
Não exatamente – o reverendo pensou enquanto se desvencilhava, já sabendo para onde a criatura havia ido. Virou no corredor dos dormitórios, em tempo de ver apenas a cauda eqüina entrando no quarto de José. O que veio em seguida foi seu grito, o brado de horror e revolta de alguém que tinha perdido todas as esperanças.
Fazendo o sinal da cruz, padre Thiago continuou correndo e entrou no aposento, abaixando a cabeça para evitar as labaredas que se alastravam pelo batente da porta. A freira estava encolhida no canto. Seu rosto retorcido mostrava uma expressão de completa demência, embora ainda restasse energia para um último ato de sanidade.
Apontava o dedo trêmulo para a cama vazia.