
Agora com licença, que ainda estou tonto com a experiência. Essa noite, vou sonhar como não sonho há muito tempo. Acho que desde meus 12 ou 13 anos...
Contos de terror, horror e fantasia
Sílvia permaneceu na porta do quarto por vários minutos, como se contemplasse um local sagrado onde não era digna de entrar. Seus olhos estavam distantes, vazios. Os tranqüilizantes receitados pelo psiquiatra produziam uma neblina espessa, que encobria a incessante vontade de chorar até morrer.
Tirou do bolso a cartinha de Otávio, manuseada tantas vezes que a tinta começava a sumir nas bordas. Sem perceber, caminhou em direção ao leito enquanto lia a última mensagem do filho doente, narrando o desespero de passar a vida inteira deitado, incapaz de se locomover sem ajuda. O mais torturante era aquele trecho final, onde pedia algo que a mãe jamais poderia acatar:
“Por favor, peço que destrua essa cama maldita. Queime, jogue no lixo não importa, apenas livre-se da minha prisão.”
A mulher sentou no colchão com um suspiro baixo, o máximo de emoção que conseguia exprimir. O aposento era mantido como estava desde a morte do filho único, os pôsteres de seu time de futebol ainda nas paredes, os porta-retratos na mesma posição. As fotos mostravam o garoto sorrindo com a família, imagens tiradas nos raros dias de pouca dor.
Dias preciosos.
O quarto era, portanto, um verdadeiro memorial. Pelo que dependia dela, continuaria daquele jeito para sempre, com o mesmo leito no mesmo lugar. Levantou de maneira lenta, arrastando os chinelos de pano que quase nunca tirava. Trancou o quarto para ninguém entrar, como sempre fazia.
Ainda aprisionado à cama, o espírito de Otávio implorou para ser atendido, sussurrando lamentos que a mãe não era capaz de ouvir.
Vou contar um pesadelo que tive quando era criança. Não parece um típico sonho infantil, mas também, nunca fui uma criança típica. Então, não duvide.
Andava sozinho de madrugada pelas ruas de uma cidade, sob a vigília de imensos edifícios que faziam eu me sentir diminuto. Tinha medo dos mendigos que dormiam na frente das lojas, cadáveres em suas mortalhas de jornal. Apertei o passo como se tivesse algum lugar para ir, mesmo sabendo que estava perdido naquele labirinto de pesadelo.
Encontrava-me no meio da quadra quando um grupo de jovens apareceu. Gritavam insultos e davam socos nos braços um do outro, chutando placas e marquises fechadas. De forma discreta – ou ao menos, da forma mais discreta possível quando se é a única outra pessoa na rua – caminhei para a calçada oposta, torcendo para não ser notado.
Fui.
Um deles olhou para mim e disse para tomar cuidado. Isso não era tão ruim, mas em seguida eles correram em minha direção.
Entrei na primeira porta que vi aberta e lá dentro era um corredor sem luz. Olhei para trás e havia uma praia ensolarada, todavia preferi caminhar rumo às trevas.
Após alguns passos, percebi alguma iluminação lá na frente. Luzes mortiças sobre quadros estranhos e belos, com rostos e corpos em posições anormais. Eram centenas, mesmo assim fui conferindo um a um, tentando decifrar padrões indecifráveis que pareciam diferentes cada vez que olhava. Era inquietante, mas o sonho me obrigava a continuar.
Então, vi que não estava sozinho ali dentro. Um vulto encarava a última pintura do corredor, uma obra que ia até o teto. O sujeito balançava lentamente para os lados, como se estivesse com dor, e suas feições estavam cobertas pelas sombras. Após alguma hesitação, aproximei-me.
O quadro mostrava um ser humano visto de frente, pernas e braços abertos igual numa pintura de Leonardo da Vinci. Seu olhar era o vazio da casca de uma criatura devorada. A boca jazia num grito congelado, como se tivesse percebido que jamais conseguiria sair de sua prisão de tinta e moldura.
Prestei atenção e percebi que o homem na tela estava esticado, além de estar em alto relevo. Hipnotizado, estiquei os dedos em direção ao quadro – não sem antes olhar para meu silencioso companheiro, esperando uma repreensão que não veio – e toquei no tornozelo da pintura. Mesmo sendo um sonho, senti uma textura de epiderme humana.
Afastei meus dedos e constatei, apavorado, que estavam vermelhos.
- Gostou do quadro? – perguntou o sujeito ao meu lado. As luzes se acenderam, permitindo que eu visse seu rosto de osso e músculos, sem qualquer pele cobrindo o sorriso de caveira.
- Fui eu que fiz - afirmou a coisa, rindo de satisfação.
Acordei em minha cama, suado e trêmulo. Só não chamei meus pais por vegonha.
Desde então, procurei não me perder de novo.
Mas até quando vou conseguir?